Arquivo da tag: #cinemas

Quando as luzes se apagam

A história do CineArte – um dos corações do Paissandu
As luzes estavam apagadas. Não havia o que esconder e nem havia forma de ocultar. Tudo o que era ilícito transbordava naquela enorme sala. Sob um piso levemente inclinado, quase não havia como tropeçar nos poucos degraus que descemos. As cadeiras eram de madeira, antigas, estofadas em couro vermelho, muitas delas estavam quebradas. Havia pequenas luzes vermelhas iluminando o chão e mesmo a placa com os dizeres “é proibido fumar” não amenizava o forte odor de nicotina no cinema.
Mulher é um ser raro naquele ambiente. A primeira que encontramos foi a bilheteira do cinema: “Vocês cinco?!”, perguntou ela admirada com o bando de estudantes interessados em investir no cinemão.
Ao entrarmos, um homem negro vestido de preto, tão surpreso quanto a mulher do guichê, mostrou-se logo prestativo: “se alguém mexer com vocês, me chamem que eu resolvo a situação rapidinho”. Seu gesto até poderia demonstrar atenção conosco, mas era visível que ele estava preocupado mesmo em evitar qualquer situação que pudesse levar ao envolvimento da polícia.

Sentadas, quietas, atentas. Ouvimos, além dos gemidos dos atores, o arfar discreto e constante de alguns espectadores. A maioria do público é composta por homens entre seus 40 e 50 anos, além de michês. Um deles, com um leque verde-escuro nas mãos, balançava graciosamente o adereço de forma convidativa.

Alguns dos espectadores assistiam de pé com as mãos escondidas no casaco, viam a cena, saíam, voltavam. Outros ficavam sentados, com a cabeça encostada e as pernas abertas, qualquer posição era válida desde facilitasse o movimento dos braços. Ninguém trocava uma palavra, mas língua dos olhos era a que mais fluía. Uma olhadela cruzada e mais demorada parecia ser o convite mútuo e mudo para “dialogarem” a sós.
O recinto tranpirava apreensão e hostilidade, parecia que temiam serem pegos com a mão na cumbuca.
Quando nos sentamos próximas ao corredor, um dos espectadores se aproximou de nós e murmurou um “olá” sedutor; aparentava ser alto e corpulento, tinha um ar intimidador que dava medo. Logo após a monossilábica frase, ele seguiu em frente e sentou-se atrás de nós: pernas abertas, corpo esparramado pela cadeira, um olhar focado que parecia estar em tudo, menos na tela.
Após o incidente, decidimos que o melhor era visitarmos outros ambientes. As últimas mulheres que vimos no local foram duas velhinhas; elas conversavam animadamente na segunda fileira da sala e o que mais impressionava não eram suas idades (por volta de 60 ou 65 anos), mas sim a desenvoltura que a conversa fluía, como se os gemidos do filme fossem meros ruídos intrusos.

Ao sair da sala, pudemos ver dois banheiros: um quebrado, outro aberto, ambos masculinos. As portas de cada boxe eram de madeira avermelhada e muito pequenas, qualquer movimento privado ali poderia ser publicamente visto. Não havia tampa nos vasos, mas em compensação, bolor e ferrugem eram presença intensa em cada sanitário. Com registros de descarga carcomidos pela idade e gotejando água, a única pia onde era possível lavar as mãos estava imunda. Sobre os azulejos brancos e (nem todos bem colados), estava um mictório grande de ferro, além de anúncios de michê espalhados em todo lugar. E, bem no meio do teto, uma breve frase conseguiu condensar bem toda a aura do local com meras três palavras: quero sua cueca.

Conhecendo os fundos, entramos em um corredor estreito que dava para uma ante-sala diferente. Nela, havia várias cabines nas quais seu interior podia ser visto pelas pequenas janelas ao lado de cada porta. Cada cabine apresentava um quarto com paredes e teto pretos, a iluminação era amarela e fraca, uma fila de homens se endireitava na ante-sala aguardando sua vez. Por dentro, era possível ver dois homens em cada cômodo, mas apesar da discreta movimentação, dava para perceber que algo mais acontecia ali.

Quem vê hoje o CineArt Palácio, não imagina seu grandioso passado. A construção de paredes em formato de parábola, piso e forro estrategicamente calculados permitiam a melhor disposição do som: este foi o primeiro cinema construido segundo as normas da arquitetura moderna por Rino Lévi, um dos maiores ícones da arquitetura brasileira.

Inaugurado em 1936, o antigo Ufa-Palácio havia nascido para ser majestoso: localizado em uma das vias mais atribuladas de São Paulo — a Avenida São João—, o cinema era caracterizado por um público maciço que ocupava as mais de 3119 poltronas.
Para se ter uma ideia, uma pesquisa feita em 1955 sobre os cinemas da cidade, constatou que o número de ingressos vendidos nas bilheterias era quase 20 vezes maior do que a população total da cidade. Ou seja, era provável que paulistano encarasse o escurinho do cinema, em média, mais de 20 vezes por ano.
A partir de novembro de 1939 o cinema recebe novo batismo passando a se chamar Art Palácio, inspirado em uma antiga distribuidora européia denominada Art-Filmes.
Com o declínio do mercado dos filmes europeus, o cinema especializa-se em filmes populares e depois eróticos, e assim como a maioria dos cinemas da época, mantém sua programação vinculada a esse segmento, com 10 filmes inéditos por apenas 7 reais.

Hoje, o CineArt Palácio parece estar em seu ponto máximo de decadência. Ao entrarmos, sentimos um ambiente pesado, formado por um público que não parece satisfeito nem consigo mesmo, que se despoja de suas máscaras sociais e que tenta descarregar suas angústias da forma mais animalesca que o homem pode encontrar.

*Texto de Celeste Garcia, colaboradora do SempreSP

1 comentário

Arquivado em Centro de São Paulo